O que de fato separa o Cristão de Cristo? Os complexos da Cristandade.

II




Como pudemos certificar a consciência dos antigos hebreus e da humanidade em geral elevou-se gradativamente até chegar a alteridade como critério do bem e do mal.

Ao contrário do que ensinam os maniqueus e puritanos, falsos profetas da Cristandade apóstata, as ações humanas não são julgadas em si mesmas por critérios imanentes, mas sempre em conexão aos outros e a comunidade, tendo em vista os danos causados.

Pecar gravemente equivale sempre a prejudicar os semelhantes.

A alteridade é um sentido que percorre o Decalogo de ponta a ponta.

Entrentanto os hebreus perderam logo tal sentido e confundiram suas leis civis e religiosas com a lei moral, tudo misturaram, mesclaram e fizeram uma salada.

No tempo de Cristo eram completamente incapazes de discernir entre o decalogo e o resto da Torá.

Jesus, entretando, soube distinguir perfeitamente entre a lei moral expressa pelo Decalogo e os demais preceitos venerados por seu povo. Por isso ao ser interrogado pelo jovem rico, cita expressamente os incisos do decalogo sem citar, de reboque, qualquer preceito civil ou cerimonial atinente a cultura hebraica.

Sobre o Decalogo afirmou com toda propriedade "Nenhum traço desta lei será anulado" e no sermão da montanha procurou restabelecer o sentido do mesmo, obscurecido pelos fariseus. As outras leis cumpre-as enquanto étnico, mas não lhas impõe a sua congregação, destinada a ser uma "Casa de súplica para todos os povos da terra.".

Diz-se até que cumpriu essa lei tendo em vista sua casa: Judá e que por nós cumpriu a lei moral, legando-nos exemplo de santidade inescedivel.

Entretanto a lei Cristã não se restringe ao Decalogo, porquanto o Decalogo inda que verídico é puramente negativo dizendo ao homem o que não deve fazer ou seja determinando que ele evite o mal e o pecado.

Deus é certamente imutavel e seu propósito - o bem - um propósito eterno.

Aos hebreus e povos antigos falou segundo a capacidade deles, conforme eram capazes de compreender o que dizia. Aos Cristãos e a todos as nações da terra faça doutro modo, conforme a lei da evolução e ampliação das capacidades humanas.

O Pai fala dum modo ao filho de sete anos e doutro modo ao filho de vinte e um anos.

O Decalogo foi entregue aos filhos menores em estado de infantilidade. É lei verídica, mas primitiva e incompleta, precisava ser superada ou aperfeiçoada.

A Lei de Cristo expressa no Sermão do Monte e no derradeiro Sermão - sobre o juizo - amplia e completa o Decalogo, SENDO RIGOROSAMENTE OBRIGATÓRIA PARA O POVO DE CRISTO, CUJA JUSTIÇA DEVE SUPERAR A DOS FARISEUS.

Aos hebreus e povos antigos foi dito que evitassem o mal. Contentou-se com isto o Pai das luzes tendo em vista a ignorância e debilidade daquelas gentes bárbaras...

Ao Povo de Cristo é determinado que faça o bem. Trata-se duma lei positiva, duma ordem a ser cumprida e não dum pedido ou rogativa...

Cristo tem o poder e autoridade de legislar para o seu povo. Por isso qual novo Moisés sobe ao monte e tem o poder de gravar duas leis e dispositivos nas almas dos que nele creem e recebem sua graça.

Examinemos pois a sua Nova Lei, a Lei perpétua da Aliança incorrupta:

Bemaventurados os espiritualmente pobres.

Trata-se dum princípio de ordem pessoal a ser cultivado.

Bemaventurados os mansos.

Trata-se dum princípio de ordem interna que está voltado para o próximo, pois quem é manso é manso com relação a alguém.

Bemaventurados os aflitos

É princípio de ordem pessoal analogo ao primeiro.

Bemaventurados os que aspiram pela justiça

É principio de ordem pessoal, mas que corresponde a uma ação externa voltada para o próximo. Quem é justo é justo para com alguém.

Bemaventurados os misericordiosos

Quem é misericordioso é misericordioso para com...

Bemaventurados os puros de coração.

Principio de ordem pessoal, que se projeta para o próximo: quem é puro é puro diante de alguém.

Bemaventurados os pacíficos.

Quem é pacífico é pacífico com relação a quem não ó é, assumindo sempre um tom conciliatório.

Bemaventurados os perseguidos.

O Evangelho nos ensina que os santos são perseguidos porque amam e praticam o bem e a justiça.

É falso que o império romano tenha perseguido aos Cristãos tendo em vista sua fé teórica. Tal afirmação não passa de rematada asnice pois os romanos eram um povo pragmático e extremamente tolerante em matéria de Religião.

Os cristãos primitivos foram perseguidos tendo em vista o dogma da igualdade e a condenação irremissivel ao regime escravocrata, fundamento econômico da sociedade antiga. Eram igualmente odiados porque se recusavam a participar das guerras e a combater vertendo sangue humano e perpetrando assassinatos em massa.

Foi a postura ou a praxis da Cristandade primitiva que lançou sobre ela os pagãos. A perseguição só cessou quando a Cristandade paganizou-se a apostatou do ponto de vista da moral amancebando-se com o império e santificando todas as formas de opressão como a servidão e a guerra... Desde então a moral Cristã perdeu seu rumo e a ortopraxia extinguiu-se...

Os mártires não são admiráveis por terem morrido... são admiráveis porque souberam por em prática os valores do Evangelho e suscitar o ódio no coração dos transviados. São mais admiraveis por suas vidas santas e piedosas do que por suas mortes... são admiraveis sobretudo porque eram anti-escravocratas e pacifistas... Não se limitaram a morrer hipocritamente pelo Evangelho: souberam vive-lo, coisa que a neocristandade não sabe... vive de ódio, tolera o ódio, compactua com ele...

Os mártires eram intrasigentes até o sangue.

Não acreditavam ser possivel pecar e de pois resolver tudo ajoelhando-se atrás da porta pedindo perdão.

O fenômeno do martirio é incompativel com uma visão solifideista de Cristianismo.

Se a fé dispensa obras dispensa o martirio, então posso negar confortavelmente ao Cristo diante do proconsul e morrer pacificamente em meu leito, pois basta-me implorar misericórdia e clamar pelo sangue do Senhor. Não, esta não era a mentalidade dos martires, os martires eram pessoas de ação... pessoas de coragem...

Eles não se contentavam em ter fé...

Não ficavam na teoria.

Concluimos que as Bemaventuranças avançam pela mesma linha que o Decalogo, a alteridade:

Todas as virtudes cultivadas pelo Cristão são virtudes que se exteriorizam com relação ao próximo e por isso virtudes vitais sem as quais não posso ser Cristão e não posso evoluir espiritualmente.

A fé não basta, não é suficiente e para nada presta se não vier acompanhada da mansidão, do amor a paz e a justiça, da misericordia, da paciencia, da caridade, etc

A vida espiritual do Cristão é muito mais vasta e rica do que a fé, comportando muitas outras dimenssões sobre as quais deve refletir-se a figura do divino Mestre...

Contentar-se com a posse da fé teorica e ignorar as demais virtudes recomendadas pelo Evangelho de Cristo é mutila-lo e perpetrar o mais sacrílego dos reducionismos.

O Cristão é regenerado integralmente em todas as suas potencialidades, capacidades e esferas do seu ser, sobretudo na esfera da moral prática.

É regenerado por Cristo para o próximo no qual Cristo habita pelo mistério da encarnação. É regenerado para servir, para auxiliar, para ser fraterno e solidário e não para ser apenas e tão somente um rezador ou o que é pior um exorcista (pajé).

Cristo não baixou ao mundo para ser mestre da Pajelança e da macumbaria, mas para ser o supremo guia e condutor moral da humanidade a que legou sua graça e incorporou no ato de sua Encarnação.

Por isso a alteridade marca todos os seus discursos e é, por assim dizer, a pedra de toque da ortopraxia.

Examinemos agora o seu derradeiro sermão concernente ao dia do juizo:

Tive fome e me destes de comer.

A nota da alteridade é manifesta.

Tive sede e me destes de beber.

Peregrino fui e me hospedastes.

Nú me cobristes.

Enfermo me assististes.

Encarcerado e me viestes auxiliar.

EIS UMA DESCRIÇÃO MAGNIFICAMENTE CLARA, OBJETIVA E PERFEITA DE COMO CRISTO HAVERÁ DE JULGAR OS MORTAIS.

Aqui está o padrão ou o critério do juizo divino tão distinto do juizo humano: farisaíco, maniqueu, individualista, etc

O juizo dos homens, que eles imaginaram e conceberam em sua vaidade indaga:

Tens fé no coração?

Faltastes a missa?

Te suicidastes?

Praticastes marturbação?

Que roupas vestistes?

.......................................

E outras puerilidades mais...

Coisa de gente fofoqueira, que não tem o que fazer...

Seria um juizo miserável...

Mas como diz o profeta: como o ceú dista da terra e o oriente do Ocidente os pesamentos de Deus excedem os dos mortais...

E como excedem...

Os mortais só se preocupam com aparências e futilidades. Deus se ocupa do necessário:

O QUE FIZESTES DE TEU IRMÃO?

Eis a única pergunta que ouviremos no grande dia...

Pobre daquele que responder: tive fé, expulsei Diabos, realizei milagres e prodigios, fui a missa todos os Domingos, jamais me masturbei, não fumei, não bebi, não bailei, não vesti roupas curtas... sou santo...

Mas e o próximo?

Ah o próximo, quem é mesmo meu próximo?

Não cogitei dele, não sabia quem era...

Então nosso santarrão fariseu terá de ouvir estas palavras desagradáveis, mas oportunas: apartai-vos de mim obreiros da iniquidade.

Ou seja, afastai-vos de mim omissos, que podendo ter feito o bem não lho fizestes permitindo que os semelhantes morressem de fome, sede, frio, enfermidades e maltratos...

Afastai-vos caterva de hipócritas, de fingidos, de mentirosos, de dissimulados e adentrai como o rico Finéias na geena de fogo!!!

A Cristandade entorpecida pelo egoismo faz tantas e tantas perguntas mas se esquece da principal...

Um é o padrão de Cristo e outro o dos homenzinhos que dizem representa-lo ou ter conhecimento de sua palavra... pontificam, livre examinam... e permanecem na sua cegueira, são cegos e guias de cegos a caminho do abismo.

Conclusão: O padrão do Decalogo e do Evangelho é rigorosamente o mesmo: o da alteridade, concernente ou aos danos causados ao próximo ou ao bem que estamos obrigados a fazer-lhe.

Todo Cristão redimido por Cristo é devedor do próximo, pois Cristo atribuiu todos os seus créditos ao próximo ao dizer: amai-vos uns aos outros como eu vos amei.

Quem não ama pode afetar toda santidade individual e externa que não logrará agradar a Deus.

Dizem que Deus se agrada do homem pela fé.

Só se for a fé viva e verdadeira, que opera e age pela caridade tendo em vista a esperança da ressurreição...

Quanto a fé puramente teórica ou isenta da caridade; esta como sentenciou o apóstolo é morta em si mesma, logo: inutil.

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