Teologia da Espiritualidade: O tratamento das paixões I - A Gula

Vou dando por aqui sequência a uma série de postagens acerca da matéria "Teologia da Espiritualidade" que ministrei rapidamente em uma faculdade de Teologia. O texto imediatamente anterior pode ser lido aqui.

Os padres antigos identificaram pelo menos oito pensamentos, ou paixões, que mais pareciam tentá-los em sua jornada. O modo como eles trataram destas paixões podem ajudar a nossa caminhada, pois se tratam também de pecados contemporâneos.

Estes pensamentos foram sistematizados no Oriente por Evágrio Pôntico. No Oriente, eram vistos pelo ponto de vista terapêutico, como paixões a serem tratadas. Os oito logismoi receberam no ocidente um tratamento mais jurídico, tornando-se posteriormente os sete pecados capitais. Cassiano foi quem levou a doutrina de Evágrio para o Ocidente, onde a “apatheia” (ausência de patologia) foi chamada de “puritas cordis”, ou pureza de coração. Os logismoi são estes: gastrimargia (gula); philarguria (avareza); porneia (obsessão sexual); orgè (cólera, patologia do irascível); lupè (tristeza, melancolia, sentir-se um lixo); acedia (perda de entusiasmo pela vida espiritual, depressão, impulso de morte, impressão de que tudo foi inútil); kenodoxia (inflação do ego, vanglória); uperèphania (orgulho). Vamos ver resumidamente todos eles:

Gastrimargia (gula): controle dos pensamentos relativos ao ato de comer. Há muitas descrições nas Escrituras relativas ao ato de comer, as vezes, como ato de desobediência e pecado, e outras, como ato de fidelidade a Deus. Vejamos alguns exemplos:

O primeiro pecado realizou-se no ato de comer o que não se deveria. Neste comer errado estava o pecado do orgulho, da cobiça, da desobediência à Deus, conforme lemos no início do livro de Gênesis.

O comer tem que espelhar um ato de fidelidade: Daniel e seus amigos se recusaram a comer o mesmo que os babilônios.

A primeira tentação descrita a respeito de Jesus também envolvia o ato de comer (transformar pedra em pão), mas o Filho de Deus sagrou-se vitorioso, havendo quem entenda que Jesus sagrou-se vencedor justamente nas tentações em que Adão falhou.

Paulo quando escreveu à igreja de Corinto precisou tratar  questões relativas ao comer ou não das carnes sacrificadas aos ídolos, o que estava causando bastante confusão naquela igreja. Precisou tratar também da questão da ceia do Senhor, em que alguns estavam comendo do modo errado, sem esperar pelos demais,  causando divisão na igreja, e envergonhando os que nada tinham.

Há muitos atos relativos ao comer e ao beber nas Escrituras. Os padres diziam que deveríamos nos tornar pessoas eucarísticas. O ato de Jesus em implantar a comunhão do pão e do vinho nos dá uma dimensão da importância positiva do ato de comer. O comer deve ser para a glória de Deus, deve gerar comunhão e alegria, santidade, amor para com os irmãos.

Os padres queriam aprender a controlar as paixões relativas ao comer. Buscavam o equilíbrio, comer em horários estipulados, em quantidade moderada. Não comiam carnes de animais quadrúpedes. Diziam que não é digno do monge sofrer com indigestão, ou seja, não deveriam comer mais do que o necessário. Interessante que a literatura parece indicar que os antigos padres estavam entre aqueles que vivam por mais tempo na sociedade. Eles deveriam comer também o que era oferecido no mosteiro, sem reclamar.  Também não podiam voltar atrás na palavra (se haviam recusado a comer algo, não poderiam voltar atrás).

Comer também tem a ver com comunhão e hospitalidade. Alimentar o pobre era alimentar o próprio Cristo. Dar, ainda que somente um copo de água a alguém na condição de discípulo significa não perder jamais a recompensa. Dar graças é uma forma de se conscientizar do que está sendo comido, pois, consumimos um mundo que não é nosso para podermos sobreviver. Toda a refeição tem que ser eucarística, ou seja, recebida com ações de graças. No mundo moderno, um número incontável de pessoas irá morrer por comeram de forma errada, daí a importância de se meditar no ato de comer.


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