494 anos da Reforma Protestante
Este mês estamos comemorando 494 anos de Reforma Protestante. Assim como, em nosso aniversário, é salutar que façamos uma auto-análise de nossas vidas, talvez assim também devamos fazer com este movimento, que logo irá completar quinhentos anos e que influenciou profundamente a história do ocidente e do mundo. Todos os anos eu faço uma breve meditação sobre este assunto, e este ano não será diferente.
Gostaria de pensar nas idéias que, em minha opinião, foram a mais forte e mais fraca na concepção protestante. O que será que foi bom para a cristandade, e o que talvez não tenha sido tão bom assim. É, obviamente, uma concepção pessoal, sujeita a erros e críticas de todos os lados. Mas vamos lá (quando penso em protestante, estou sendo bastante genérico, não me restringido à reformados, anglicanos ou luteranos em si).
Em minha opinião, o ponto forte da Reforma foi a concepção soteriológica, ou seja, a doutrina da salvação. Houve um consenso entre os reformadores que a salvação se dava por graça, por meio da fé. Tal concepção resume-se no fato de que a salvação não é algo que se alcança pelos próprios méritos, mas que se recebe pela fé, imerecidamente. E que, aí sim, a pessoa, uma vez atingida pela graça de Deus, partirá para as boas obras, sendo que estas não são necessárias para a salvação, mas um resultado desta. Ninguém poderá, diante de Deus, dizer que mereceu ser salvo, pois a salvação é uma dádiva decorrente de uma dívida nossa que foi paga por um Outro. Deus é operador da salvação, do começo ao fim, pela predestinação, redenção e santificação. Uma obra trinitária em todo o seu esplendor. No catolicismo romano, as obras eclesiásticas substituíram a lei judaica e são necessárias à salvação, embora muitos católicos romanos tenham se aproximado da concepção soteriológica protestante. Ou seja, os reformadores inverteram a lógica. Pela fé, somos salvos, e aí sim, por conta da salvação alcançada, submete-se às obras eclesiais, tanto litúrgicas, eclesiais quanto morais.
O ponto fraco da Reforma, em meu sentir, foi sua concepção eclesiológica (a doutrina da igreja). Não na sua concepção teológica em si (“onde o evangelho é pregado em sua pureza e os sacramentos corretamente administrados”, aí está a igreja), entretanto, em sua concepção estrutural, seu sistema de governo. Isto porque, no meu entender, o protestantismo, com seu biblicismo radical, dividiu-se no que tange à eclesiologia do novo testamento pelo singelo fato de que, na Bíblia, ao que tudo indica, não há uma eclesiologia estruturalmente definida, mas sim eclesiologias, no plural (claro que presbiterianos, batistas e episcopais irão defender que seu próprio sistema é o bíblico, mas conforme disse, minha reflexão seria um pouco genérica neste assunto). O tempo neotestamentário um período em que a igreja está ainda em formação. A eclesiologia da igreja cristã vai se definindo e consolidando nos primeiros três ou quatro séculos da igreja, em um sistema consolidado com diáconos, presbíteros e bispos. Ao rejeitar tal eclesiologia, ou pelo menos, ao não lhe dar o valor merecido, alguns reformadores acabam por não dar muito ouvidos à séculos de sabedoria e prática eclesial. Talvez tenham feito isso pelo fato de, no Ocidente, tal eclesiologia, a episcopal, ligada ao sistema de sucessão apostólica (defendias por Inácio, Irineu, Orígenes, Cipriano e incontáveis outros teólogos do chamado período patrístico) estar muito ligada ao poder papal. Entretanto, se tivessem olhado para o Oriente, teriam encontrado o sistema de independência entre as igrejas, com a conservação do modelo episcopal.
A eclesiologia protestante, então, afetou profundamente o jeito de sermos igrejas. Os protestantes se dividiram demais, se tornaram por demais individualistas. E a eclesiologia protestante, conforme ficou configurado atualmente, jamais poderia, no meu entender, produzir o próprio depósito de fé pelo qual o próprio protestantismo também depende (imaginem se tivéssemos que definir o cânon das Escrituras neste nosso tempo). Ou seja, o protestantismo perdeu o rumo de sua própria história pela própria perda da capacidade de reformar a igreja pela qual fazia parte, tornando-se uma força paralela, independente na história do cristianismo, produzindo divisões sem fim, o que muitos chamam de atomização da igreja (as igrejas livres se tornarão o padrãos para os evangélicos?).
E talvez, decorrente de tal confusão eclesiológica, tem proliferado uma forte reação no meio pentecostal, baseados em sistemas eclesiais talvez mais fortes, hierarquizados e radicais que o próprio catolicismo romano (com apóstolo, este, sempre no singular, bispos, pastores, etc), centralizados e autoritários, pois o centro de comando não vem de sistemas colegiados nem de diálogos conciliares ou sinodais, mas da personalidade de seus líderes, cujo poder, em suas igrejas, em muito supera a do papa romano na ICAR.
Essa força soteriológica e fraqueza eclesiológica se reproduz no próprio discurso evangélico. Ou seja, os evangélicos concentram-se no sentido soteriológico da teologia, com seus esforços evangelísticos (o que, diga-se de passagem, é algo bom), somando esforços pessoais e financeiros; entretanto, o discurso sobre a unidade da igreja praticamente inexiste, ou quando existe, se dá somente em nível local ou denominacional, ou ainda, se torna tão etéreo, teórico, quase platônico, como se tal unidade estivesse devidamente representada na tal igreja invisível (uma igreja que ninguém vê, em uma unidade que ninguém vê), o que, na prática, fortalece somente as próprias denominações em si. O discurso da unidade ficou relegado ao catolicismo romano e a algumas igrejas protestantes históricas.
Em minha opinião, então, falta ao protestantismo, principalmente ao pentecostalismo (cujo individualismo foi agravado pelas inspirações carismáticas e pelo carisma dos líderes), esta concepção e este esforço pela unidade da igreja, pois unidade também é testemunho, também é evangelismo, também é anúncio (João 17.21). Continuaremos tendo tradições teológicas e eclesiais diferentes, entretanto, tais tradições poderiam buscar maior diálogo entre si, como de fato, muitos já estão fazendo. Metodistas com metodistas, presbiterianos com presbiterianos, batistas com batistas, assembleianos com assembleianos, etc, primeiramente reunindo-se em torno de sua própria tradição, e também dialogando umas com as outras. Talvez, sonhar até com saltos maiores, como a própria unidade das igrejas, institucionalmente falando. Em contrapartida, seria bom que os líderes pensassem com mais calma antes de fundarem novas igrejas, novas denominações, e realizarem novas cisões. Ai, a Reforma talvez tenha maior relevância e força na sociedade em que está inserida. Esta falta de unidade e consistência faz com que, em uma data que se comemora a própria Reforma, seja praticamente esquecida pela maioria dos que se dizem evangélicos neste país; uma pena, pois todos nós, evangélicos e protestantes, somos devedores de tal acontecimento; mas este esquecimento me faz pensar se na verdade não somos hoje realmente de uma religião diferente da dos reformadores.
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ResponderExcluirParabéns, comentário plausível a realidade existente hoje.
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