A Ação Libertadora do Servir

Jesus sentou-se, chamou os doze e lhes disse: Se alguém quer ser o primeiro, deve ficar em último lugar e servir a todos. (S. Marcos 9:35)



Que o amor faça com que vocês sirvam uns aos outros (Gálatas 5:13c)



Regis Augusto Domingues*


Provavelmente um dos maiores conflitos da alma humana repouse no conturbado antagonismo entre o Ser e o Ter (Erich Fromm), entre o conteúdo e a forma. Principalmente na sociedade hodierna, movida pelo poder econômico e abertamente consumista. Onde a pessoa é levada a crer que seu valor está ancorado no que possui, no poder que exerce e no montante do que consome. Cultura essa que identifica, ou melhor, estigmatiza a pessoa pelo que veste, pelo carro que tem, pelo lugar que reside, pela conta bancária. Uma verdadeira coisificação da pessoa humana.

Nesse cenário sócio-cultural, onde predominam as relações de desigualdade e de poder, onde uns oprimem outros por meio do controle disciplinar (Foucault), do domínio político, econômico e ideológico (Marx), somos incentivados a abandonar o Ser, a essência relacional inerente a pessoa humana, para nos moldarmos as formas plásticas e artificiais do Ter, a ilusão construída a partir da posse, do poder e do status. Aprisionada pelos aspectos superficiais e efêmeros do Ter a alma enferma lança-se num espiral de ilusões. Seus principais sintomas são o isolamento, a competitividade, o egoísmo. Alimentada por ilusões a alma fragmenta-se, perde a integridade e a existência acaba resumindo-se num retalho de coisas que se tenta Ter. Assim como as coisas, nos tornamos descartáveis.

Nesse estado de transe inspirado pela ilusão somos tentados a nos ocuparmos exclusivamente das coisas terrenas e passageiras e abandonamos o que é perene. Entramos em conflitos e competições, lutamos e guerreamos para possuir. Haverá algum valor nisso? Aqui, então, invoco o testemunho de S.Mateus em seu evangelho: O que adianta alguém ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua alma?(Mt 16:26).

Um agravante a toda a essa situação é que o próprio campo religioso encontra-se entregue as seduções do Ter. O local onde a alma humana deveria encontrar algum conforto, esperança e renovação de forças, acabou por se deixar contaminar pela moléstia do egoísmo consumista. As chamadas religiões de mercado têm apregoado o mesmo espírito de nossa época, tendo o seu discurso e prática fortemente dominados por relações utilitaristas, pelo poder ditatorial e ideológico pretensamente legitimado pelo divino, pelo incentivo na obtenção de lucros e vantagens a partir de uma barganha com Deus e a qualquer custo. As pessoas correm atrás de mensagens triunfalistas repletas de receitas de sucesso, enquanto líderes religiosos se utilizam das pessoas e seus recursos para viabilizarem seus ministérios.

O espectro do Ter ronda e influencia o campo religioso, estando o próprio cristianismo comprometido. Infelizmente, quando observo a igreja cristã pela perspectiva teológica e histórica concluo que muitos que elevam o estandarte de uma pretensa mensagem cristã não passam de uma grotesca caricatura do evangelho. Onde a pessoa humana deveria encontrar a redenção, ser valorizada e cuidada como obra prima de Deus, tem encontrado o oposto: um discurso coisificante e alienante.

É necessário despertar! Cuidar para que nosso coração não esteja aprisionado pelo Ter, atentar para que nosso tempo e talentos não estejam dominados pela intenção exclusiva de possuir e dominar. E é aqui que nos deparamos com a figura magistral que nos desperta desse sono profundo.

A mensagem e a vida de Jesus Cristo quebram com a estrutura social sustentada pelo Ter e suas implicações, ao anunciar o Reino de Deus e apresentar, limitado ao contexto que discutimos, a transformação das relações humanas injustas. Segundo o testemunho do evangelista S. Marcos, Jesus vinha pelo caminho falando aos discípulos sobre sua morte e ressurreição. Mas os discípulos não entendiam o que o Mestre falava, estavam entretidos numa discussão sobre quem seria o primeiro no reino. Estavam amarrados aos laços do Ter prestígio, do Ter poder, do Ter controle. Como poderia Jesus estar falando de morte e ressurreição, se eles aguardavam um Messias com grande poder político, um Rei triunfante que libertaria a nação do domínio Romano e voltaria a colocar Israel entre as maiores nações do mundo antigo? Jesus confronta essa visão triunfalista e dominadora ressaltando uma característica essencial dos que pertencem ao Reino: o servir.

Essa é a característica fundamental e libertadora do Reino de Deus: servir, doar-se ao outro. A mensagem do Evangelho é uma mensagem de liberdade profunda e integral, pois liberta do egoísmo e da independência, proporcionando uma entrega radical a Cristo, ao outro, no amor-serviço, conforme o apóstolo S. Paulo nos inspira na epístola aos Gálatas. A mensagem do Evangelho nos liberta para um novo relacionamento com o Criador e a criação.

Servir, doar-se, ser você mesmo, com os dons e talentos atribuídos por Deus, em benefício do próximo. O Servo é aquele que se doa, é aquele que perdoa, é aquele que ama, é aquele que caminha junto do desamparado, do aflito, do pobre, do enfermo, do pecador.

É na ação libertadora do servir que se quebram as cadeias do egoísmo, do individualismo, das relações de poder, das estruturas injustas, enfim do mal estrutural (Sponheim), e constroem-se pontes de relacionamentos, de amor, de comunhão e de preservação da vida.

Experimentamos do próprio Cristo o poder transformador do dar-se, quando Ele vindo como servo em forma humana, abriu mão da sua condição de Deus, vivenciou todas as mazelas humanas, sofreu os nossos sofrimentos, morreu em nosso favor e ressuscitou nos dando a vida. Alienados de Deus estávamos em estado de miséria, Jesus como servo, na unidade com o Pai e o Espírito Santo, compartilhou conosco da sua vida. Ao servir Cristo nos resgatou da morte para a vida e da destruição e do caos vez nova todas as coisas.

Quando nos conscientizamos da vida de Cristo em nós, dos dons de Deus em nós e de quem somos, aprendemos, então, a sermos servos e a construirmos novas relações, baseados no essencial da vida: o Amor. Para tanto, o servo necessita de uma mente renovada, destituída de todos os preceitos efêmeros da vida. Mente sem preconceitos, sem legalismos, sem moralismos, sem discriminações, mas inclusiva. O servo precisa estar apenas pronto a servir com o mesmo amor de Cristo.

O servo não busca seus próprios interesses, mas o dos outros, o servo não busca a fama e nem a visibilidade pública, mas o anonimato nas pequenas e grandes ações. O servo busca amar incondicionalmente e ter um coração compassivo como do Mestre. O servo é sal e luz. Influencia com seus atos e difundi esperança com suas palavras. É-nos absolutamente necessária essa entrega ao serviço, ao doar-se sem restrições, ao aspecto diaconal da vida cristã. Mas cabe aqui uma advertência sincera: nem sempre servir será gratificante.

Ao servir estamos nos expondo aos desapontamentos, as frustrações, aos erros, as perseguições, as rejeições, as dificuldades. Mas lembremos da parábola nos evangelhos quando o Senhor ensina: Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: Venham, vocês que são abençoados pelo meu Pai! Venham e recebam o Reino que o meu Pai preparou para vocês desde a criação do mundo. Pois eu estava com fome, e vocês me deram comida; estava com sede, e me deram água. Era estrangeiro, e me receberam na sua casa. Estava sem roupa, e me vestiram; estava doente, e cuidaram de mim. Estava na cadeia, e foram me visitar. Então os bons perguntarão: Senhor, quando foi que o vimos com fome e lhe demos comida ou com sede e lhe demos água? Quando foi que vimos o senhor com estrangeiro e o recebemos na nossa casa ou sem roupa e o vestimos? Quando foi que vimos o senhor doente ou na cadeia e fomos visitá-lo? Aí o Rei responderá: Eu afirmo a vocês que isto é verdade: quando vocês fizeram isso ao mais humilde de meus irmãos, foi a mim que fizeram. (Mt 25:34-40).

Quando servimos estamos nos lançando aos braços afetuosos e ternos de nosso Senhor. Seja essa a nossa oração:


Oração de São Francisco

Senhor, fazei-me um instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio que eu leve o amor,
Onde houver ofensa que eu leve o perdão,
Onde houver discórdia que eu leve a união,
Onde houver dúvida que eu leve a fé,
Onde houver erro que eu leve a verdade,
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver a tristeza que eu leve a alegria
Onde houver trevas que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais,
Consolar que ser consolado,
Compreender que ser compreendido,
Amar que ser amado.
Pois, é dando que se recebe,
É perdoando que se é perdoado,
E é morrendo que se vive para a vida eterna.

http://br.youtube.com/watch?v=wlAsBbLAFcI

* o autor do texto é clérigo anglicano


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