Práxis Social X Piedade Pessoal

Por Carlos Seino

A consciência e a atividade social cristã não podem dispensar a piedade pessoal, sob pena de se tornar estéril, pragmática, secularizada, e perder o seu impulso vital que conduz a Deus.

Conheço alguns teólogos “sociais” que parecem desprezar a piedade pessoal de algumas pessoas.

Tratam a espiritualidade pessoal como se fosse um tipo de técnica de auto-ajuda, individualista, burguesa e alienada.

Que a oração em nada contribui para aliviar a dor do mundo, nem a leitura individual das Escrituras, nem mesmo o cultivo das virtudes pessoais. Dizem que é a atividade consciente, no mundo, revolucionária, que irá transformá-lo.

Vi, certa vez, um colega, que se diz adepto da teologia da libertação desprezar outro colega que disse se recusar a transar antes do casamento, além de não fumar, nem beber, além de separar um período por dia para leitura meditativa e oração. Tal teólogo “ralou” com o outro colega por ter tais “escrúpulos”, e não se envolver na causa proletária, ou revolucionária. Disse ainda que o cumprimento de tais coisas em nada alteraria o curso do mundo.

E, de fato, é possível que, em algumas de suas observações, nosso amigo revolucionário tenha razão. Talvez a piedade pessoal em nada resolva mesmo o problema da miséria no mundo.

Entretanto, tal espiritualidade, que se manifesta em uma vida disciplinada e regrada, apesar de talvez não resolver o problema da miséria no mundo, pode evitar a miséria da própria vida (isso, sem dizer que é questionável a tese de que uma piedade pessoal não possa afetar profundamente toda uma comunidade).

E, dificilmente, alguém resolverá o problema da miséria do mundo, se não tiver algum controle sobre suas próprias misérias pessoais.

Caso contrário, o tal discurso “libertacionista”, no fundo, poderá se tornar aquilo que julga combater, ou seja, um discurso alienante, em que alguém, passe por alto de suas próprias misérias pessoais, e passa a atacar violentamente o que julga ser miséria alheia.

E suas idéias se tornarão tão perfeitas que, todo o resto do mundo se torna imperfeito, e, alvo de sua implacável crítica.

E não obstante tal discurso visar ser materialista, no sentido histórico e filosófico do termo, tal pessoa será somente mais um idealista. Nunca há a subsunção de suas idéias com o mundo real, pois este não é bom o suficiente para aquele.

Não que seja errado ser idealista. Sem idealismo e utopia não se chega a lugar algum.

Mas o que se quer evitar é a própria cisão pessoal, divisão, entre aquilo que se vive e aquilo que se prega.

De modo que, o meu amigo libertacionisa não deveria desprezar a piedade pessoal, subjetiva, ou o substrato místico da experiência cristã.

É muito comum ver e ouvir o discurso dos que enveredam por aquele caminho, baseando-se em grandes feitos de personagens bíblicos, como por exemplo, Moisés, Isaías, ou mesmo o próprio Jesus Cristo. São citados trechos de suas pesadas críticas contra os opressores de seu tempo, sua forte carga social em seus discursos, a forma como enfrentaram o poder.

E de fato, estes e outros personagens bíblicos foram verdadeiros libertadores, cada qual a seu tempo, cada qual do seu jeito.

Entretanto, não podemos perder de vista a vida total de tais personagens.

Podemos, por exemplo, desprezar toda a piedade pessoal de Moisés, suas experiências no deserto, em jejum e oração, seu relacionamento íntimo com Deus, a ponto de ser chamado de o “homem mais manso da terra”?

E Isaías, o mesmo que confrontou frontalmente a elite corrupta de seu tempo, não teve também uma fortíssima experiência de conversão e relacionamento pessoal com Deus, conforme podemos depreender da leitura do sexto capítulo do livro que leva o seu nome. O mesmo Isaías que julgou-se um homem impuro que viva no meio de um povo de impuros lábios foi quem condenou aqueles que juntavam de casa a casa, campo a campo até parecerem ser os únicos habitantes da terra.

E o próprio homem Jesus, que enfrentou publicamente os grupos de poder de seu tempo, confrontando-os com o seu pecado, acusando-os de grave injustiça, mas que, concomitantemente, sabia retirar-se para o deserto e orar, estabelecendo íntima comunhão com o Pai.

Poderíamos ainda ficar muito e muito tempo falando ainda dos antigos padres da Igreja, que, com profunda piedade pessoal, também souberam calar a boca de reis, confrontar poderes, mesmo que isso levasse ao martírio, como no caso de João Cristóstomo.

Por isso, vemos que na vida dos grandes homens de Deus, que abalaram os alicerces de todo principado injusto, havia também uma profunda piedade, uma profunda mística. Eu desconfio que toda a revolução que tenda a ignorar o substrato último da existência, a mística e a espiritualidade, acabam por se tornar em sistemas opressores, pois acabam por criar um novo ídolo, e ídolos são sempre exigentes. Parece que quando tiramos o substrato religioso, místico das pessoas, não há “combustível” para se auto-reformar, e todo o sistema passa a ser composto de regras heterônomas, que tendem a controlar o ser somente de fora para dentro, causando opressão. Daí, no meu sentir, o dito socialismo histórico e científico jamais ter conseguido criar o novo homem que tencionava fazer.

Meu amigo teólogo, obviamente, além de me julgar conservador, nas entrelinhas deixa a entender que os místicos cristãos também são alienados e alienantes, sejam eles monges, sejam eles pentecostais, ou sejam aqueles que reservam parte de sua vida diária para se dedicar a oração privada.

De qualquer modo, penso que não devemos, nunca, desprezar a “práxis”, entretanto, julgo que cometeremos um grave erro se desprezarmos a piedade pessoal e o relacionamento com Deus. Não são poucos os que, com um discurso revoltoso, acabam abandonando a vida paroquial, comunitária, fazendo com que todo o amor se seque de seu coração, tornando-se juiz de todos. Não precisa ser assim. Não deve ser assim. Um coração ressentido não produzirá nada de bom.

Daí, no meu sentir, a práxis social e a piedade pessoal não estão em oposição, mas se complementam.

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