Escrituras e Tradição


Alguns amigos meu evangélicos vivem dizendo que eu tenho um pé no catolicismo.

Tudo bem; não tem problema. Ao ler parte do diário de John Wesley, este dizia que constantemente era chamado de "jesuíta" de "papísta", por seus amigos calvinistas.

Não que eu seja algo parecido com o santo Wesley; mas já é fonte de consolo saber que ele também teve seus entraves por defender alguns pontos de vista que não batiam com a ortodoxia protestante em vigor.

Entretanto, o que quero dizer quando menciono que não se faz teologia, ou não se lê a Bíblia sem a tradição? Quero contrapor uma visão de boa parte de meus amigos protestantes que, firmados em uma falsa noção do que seja "Sola Scriptura" (Somente a Bíblia) afirmam que somente a Bíblia é suficiente para se fazer teologia, ou para se entender todo o processo de formação do próprio cânon bíblico.

E porque não é suficiente?

Um dos motivos, é pelo simples fato de que, até para saber o modo pelo qual o cânon bíblico foi formado, você precisará estudar a Tradição da Igreja.

Como responder a pergunta: "porque entraram somente quatro evangelhos? Porque o evangelho de "Felipe", de "Maria Madalena", de "Tomé", entre muitos outros não entraram? Porque não entraram para o cânon o "Didaquê", as epístolas de "Inácio", de "Clemente", de "Policarpo"? Porque, mesmo sem autoria certa, entrou a epístola escrita aos "Hebreus" (e porque, a sua autoria foi atribuída ao apóstolo Paulo, mesmo sem tal fato ser mencionado na própria carta?). Porque a epístola de "Tiago" demorou tanto para entrar no cânon? Porque o primeiro evangelho foi atribuido a "Mateus", o segundo, a "Marcos", o terceiro, a "Lucas" e o quarto a "João", se tais coisas não vêm explicitamente mencionadas em seus escritos? Ora, tais questionamentos só podem ser respondidos à luz da história, da tradição do cristianismo.

Sei que um protestante ortodoxo vai dizer: o cânon foi inspirado pelo Espirito Santo, visto que toda a Escritura é inspirada por Deus.

Ora; ninguém nega que realmente as Escrituras sejam inspiradas por Deus, e que realmente seja um milagre de Deus; entretanto, neste processo, homens são utilizados no decorrer da história, e é a isto que chamamos, de certa forma, de tradição. De modo que, ao olharmos para a história, e para os acontecimentos, vemos a forma de Deus agir para se elaborada a lista canônica dos livros que compõem a Bíblia.

Por isso, mesmo para entender a formação deste "instrumento", dos mais sagrados para o protestantismo, temos que consultar a Tradição.

Entretanto (e aqui entra o meu protestantismo em contraposição ao catolicismo romano e ortodoxo), isso não significa colocar a Tradição, ou o Magistério, em pé de igualdade com as Escrituras. Muito pelo contrário.

Uma vez reconhecida a autoridade apostólica dos Escritos canônicos, e a autoridade de quem escreveu tais obras, reconhecemos que a Bíblia é a maior fonte de autoridade para a construção de nossa fé e identidade cristã, e não a tradição da Igreja. Ou seja, a autoridade de quem escreveu é maior do que a autoridade de quem recebeu tais escritos, e o Espirito Santo, segundo nossa crença, tem guiado a Igreja Cristã a preservar tais escritos, pois foi Ele mesmo que disse que "passariam os céus e a terra, mas suas palavras jamais passariam".

Portanto, a Bíblia é um milagre divino, do qual contemplamos, estudamos, e cremos que, devidamente ajudados pelo Espirito Santo, podemos encontrar na leitura de suas páginas, o Verbo Encarnado, este sim, Palavra única e Infalível de Deus.

Leia também:
Da infabilidade das Sagradas Escrituras.

Comentários

  1. Prezado Carlos,

    Entrei pelo seu blog via o "Nani e a Teologia".

    Seu texto é bem interessante. Os próprios reformadores nunca defenderam ser a Bíblia a única autoridade de fé e prática: defenderam que era a única autoridade infalível, a qual a Igreja, através dos credos, confissões e da tradição exegética, estava subordinada.

    Entretanto, o "Sola Scriptura" afirma que a Bíblia é completamente suficiente para tudo o que precisamos para a salvação, a fé e a vida do homem. E a doutrina da fé não estaria inclusa também na teologia?

    Sobre a questão da formação do cânone, o que você expõe não seria bem "tradição", mas é a doutrina reformada do testemunho interno do Espírito Santo, que capacita a Igreja a reconhecer as Escrituras inspiradas. Digo isso porque o termo tradição é um tanto ambíguo, e pode dar margem para pensarmos na Igreja como conferindo autoridade "ab extra" ao cânone. Pois se houve dúvidas quanto a canonicidade de alguns livros, o "grosso" do NT (e isso inclui os quatro evangelhos e a carta aos Hebreus) nunca foi contestada senão pelos grupos heréticos.

    Um abraço,

    Rodrigo

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