Palavra e Sacramento no pensamento de Karl Barth



“Nos ambientes da Reforma, a igreja sacramental de Roma foi substituída por uma igreja da Palavra. Muito depressa, a pregação tornou-se o centro de gravidade, ficando a celebração do sacramento com um caráter mais restrito. E atualmente, o que vemos? Por um lado, a igreja romana, igreja do sacramento na qual a pregação carece de valor; por outro, a igreja evangélica na qual há também um sacramento, porém, não é parte integrante nem obrigatória do culto. As duas posições são uma espécie de destruição da igreja. O que pode significar uma pregação que não faz referência ao sacramento que deve interpretar? Não vivemos do que o pastor sabe dizer, senão do fato que estamos batizados e de que Deus nos tem chamado. Por demais, tem-se reconhecido esta lacuna em nossos dias e intenta-se preenchê-la por todos os meios possíveis (renovação da liturgia, enriquecimento do culto por meio da música, etc). Contudo, estes paliativos estão fadados ao fracasso desde o começo, pois saem fora do verdadeiro problema”.


“Nos círculos que defendem estes modelos de renovação do culto, se busca sem razão um fundamento em Martinho Lutero. A intenção do reformador ao intentar manter, o máximo possível, o que era válido na liturgia romana era, antes de tudo, dar um lugar à ceia. E João Calvino não cessava de insistir sobre a necessidade de um serviço eucarístico em cada culto dominical. Justamente, é isso que nos falta hoje em dia: o sacramento de todos os domingos. Deveria fazer-se da seguinte forma: no início do culto, batizar na presença da assembléia e no final, a ceia; entre os dois sacramentos, a pregação, que teria desta maneira seu pleno significado. Então seria reto administrar o sacramento e ensinar o puro evangelho (recte adminstrare sacramentum et purê docere evangelium). Porém, não temos compreendido o autêntico significado do culto evangélico em sua totalidade, falta eficácia a nossos esforços teológicos e aos nossos movimentos litúrgicos. A pregação terá seu lugar na liturgia somente quando se realizar corretamente no culto do sacramento, porque só desta maneira pode desempenhar seu ofício, que é o de conduzir ao sacramento. Não se deve separar a administração dos sacramentos do anúncio do evangelho, porque a igreja é uma dimensão totalmente física e histórica, um corpo visível e real que ao mesmo tempo é corpo invisível e misterioso de Cristo e ambos de uma só vez.

(Karl Barth in “A proclamação do evangelho”, fonte editorial, p. 26-27)


O que poucos evangélicos sabem é que os reformadores defendiam que todos os domingos deveria ser realizada a chamada liturgia eucarística, como sempre foi desde os tempos do cristianismo primitivo, conforme atesta a obra apologética de Justino Mártir. A liturgia do culto, desde cedo, foi baseada na experiência do encontro dos discípulos com Jesus na estrada de Emaús (Lucas 24.13-35). A proclamação das Escrituras deve aquecer o coração dos ouvintes, e o Cristo é reconhecido no partir do pão. John e Charles Wesley, por exemplo, mesmo após pregações ao ar livre, consagravam os elementos eucarísticos e distribuíam ao povo, chegando, em algumas ocasiões, a distribuirem milhares de elementos consagrados. Mas, por algum motivo histórico, talvez para evitar-se a sua banalização, os evangélicos optaram por realizar a santa ceia, ou somente uma vez por mês, ou ainda com maior espaço de tempo (há os que realizam somente uma vez por ano).

Nos cultos católicos (ortodoxo, anglo-católico e romano), o ápice é a eucaristia. Esta é feita em forma de elaborada oração, que, com poucas variações, têm se repetido pelos séculos. Somente bispos e presbíteros podem realizar a consagração dos elementos. Somente a eles foi dado tal autorização e poder. Daí, a grande crise enfrentada pela igreja romana em casos de paróquias afastadas, onde não há presbíteros (padres). Entretanto, qualquer pessoa pode pregar no culto católico. Logo, a Palavra, ou ao menos, a pregação da Palavra (sermão) não é visto em sua natureza sacramental estritamente falando. Tanto é assim que na liturgia católica, ele não é obrigatório. Bastam as leituras. No que tange às leituras, tenho uma observação a fazer em relação à liturgia católica. Geralmente, são feitas de três a quatro leituras na primeira parte do culto católico, que é a liturgia da palavra. São lidas uma passagem do antigo testamento, uma do novo, um salmo e uma passagem do evangelho, seguindo-se o calendário litúrgico da igreja. Entretanto, o sermão geralmente não consegue explorar devidamente todas estas passagens, extraindo-se muito pouco da riqueza das leituras. Não há pregação expositiva, de modo geral, nestas Igrejas, pois o culto não é preparado para tanto.


Particularmente, pelo menos teoricamente, concordo com Barth e Calvino, no que tange à realização do evento eucarístico todos os domingos, associado a uma boa pregação da palavra. Isto está de acordo com a prática do cristianismo primitivo, bem como de toda igreja indivisa. Geralmente, o culto da Palavra era feito de manhã; e o partir do pão e a consagração do vinho, à noite. Depois, tornaram-se ambos parte de uma única reunião, reunidas na liturgia da palavra e na liturgia eucarística, e separaram-se a celebração da ceia em si do ágape, que era uma refeição maior. Ambos, Ceia e Pregação, se complementam. Um, a palavra, falada, o outro, a palavra vivida; ambos, originados na encarnação, e apontando para a parousia. E a ceia, como amálgama da unidade comunitária, e desta com a Santíssima Trindade. Entretanto, caso assim não seja, que pelo menos se mantenha a celebração da Santa Ceia uma vez por mês, conforme realizado na maior parte das Igrejas evangélicas. Este é considerado o culto mais solente e importante da igreja, e, fazendo-se assim, talvez ocorra a vantagem de se evitar a sua banalização.

Comentários

  1. Uma amiga me passou o link, por sinal bastante claro e elucidativo. A título de colaboração, gostaria apenas de questionar três coisas:

    A primeira é a alusão à crise da Igreja Católica pela falta de clero em lugares afastados, impossibilitando a celebração eucarística. Esse problema é inerente ao Evangelho, pois os Apóstolos ordenavam bispos e presbíteros como seus sucessores nos lugares por onde evangelizavam. É evidente que, onde isso não era possível, os fiéis ficavam sem a Eucaristia.

    Outra questão é sobre a frequência da Eucaristia. O fato de almoçarmos diariamente não é motivo para banalizarmos as refeições, embora isso possa ocorrer com algumas pessoas. Da mesma forma, sendo a Eucaristia alimento, a frequência convém que seja assídua. Por outro lado, uma coisa é a participação na celebração e outra a comunhão na celebração: assim como um doente poderia participar de uma festa familiar mas permanecer em jejum, da mesma forma um cristão em situação de pecado pode assistir a cerimônia mas só comungar em outro momento oportuno, depois de se ter emendado de suas faltas. Por outro lado, a Igreja sempre celebrou a Eucaristia aos domingos, como inclusive indica o texto, mas é bem provável que desde os tempos apostólicos a celebração já fosse diária, como se faz há séculos e até hoje (cf. At 2,46).

    A terceira objeção que faço é a respeito da Liturgia da Palavra, pois o artigo traz muitas imprecisões. Na verdade, somente os clérigos podem pregar na Igreja Católica; além disso, a homilia é obrigatória nos domingos e festas; se ocorrer alguma deficiência na pregação, a causa é o despreparo do pregador, não um eventual defeito da liturgia; por fim, a Liturgia da Palavra é parte essencial da Missa, não um adendo. No sentido desse último ponto, é preciso frisar também que a Liturgia da Palavra, mais do que um aquecimento do coração dos fiéis, consiste propriamente num ato de culto a Deus.

    ResponderExcluir
  2. Em relação à primeira questão: Eu presumo que seja uma crise mais inerente às instituições do que do evangelho em si. Fiz um curso no mosteiro de São Bento, e os amigos católicos me informaram desta crise, e de como neste locais as igrejas evangélicas têm crescido, talvez, pela ausência de clérigos católicos.

    Em relação à segunda: A compreensão que alguns evangélicos foi de que a solenidade do evento ficaria mais adequada com a sua celebração dominical ou pelo menos uma vez ao mês, ao invés de todos os dias. Celebramos de forma um pouco diferente. A relação vertical e horizontal da comunhão para nós é muito importante.

    Em relação á liturgia da palavra, talvez seja um distanciamento entre a prática e a teoria. A questão do aquecimento do coração é uma referência ao evangelho; o efeito causado pela pregação de Cristo no coração dos seus discípulos, algo que se deve buscar, na compreensão evangélica, a cada celebração. De fato, isso também é um culto a Deus. O tema “aquecimento do coração” é bastante importante na teologia wesleyana.

    Obrigado por participar aqui do blog. Estou com o meu computador péssimo. Quase não consigo responder esta postagem!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Mais vistas do mês

Toda a Reforma em apenas dois versículos

Uma reflexão acerca do Salmo 128

Quem não dá o dízimo vai para o inferno?

A triste história do rei Asa

Ananias, o discípulo que batizou Paulo

A impressionante biografia de William MacDonald

José do Egito - um exemplo de superação

A Conversão de Zaqueu (Lc 19)

Uma comparação entre Zacarias e a Virgem Maria

Os "logismoi"