Ainda em torno do infernismo...



Mesmo não tendo uma 'Capri' a sua disposição, como Tibério César, optei por retirar-me para os reconditos de minha biblioteca e por iniciar sua catalogação, afinal tratam-se já de quase nove mil livros, muitos dos quais raros e alguns únicos, como os primeiros folhetos protestantes publicados no Brasil - pelo srs Eduardo Carlos Pereira, Zacharias de Miranda, Miguel G Torres, etc - a 'Historea do Schisma do reyno de Inglaterra' por Ribadaneyra de 1684, etc

Acontece que mesmo daqui dos jardins e pátios em que busquei isolamento não deixo de receber alguns visitantes especiais, em geral nossos ex companheiros de estudo ou ex alunos... acorrem uns e outros a este lugar pelo simples gosto do debate e da discussão amistosa... E vindo até mim, trazem-me notícias do mundo lá fora em meio ao qual ateus e materialistas a um lado e cristãos platônicos e judaizantes a outro travam titânicas batalhas tendo em vista o controle da sociedade.

Mas eu não me intrometo mais. Mesmo quando um de nossos mais ativos colaboradores, seduzido pelos sofismas da pós modernidade, abraça ao ateísmo, não interfiro...

Em meio a este vivo combate travado entre as forças de Demócrito e Platão, recuso-me a optar. Tenho direito de não estar nem com Platão nem com Demócrito, ou seja, nem com o materialismo positivista, simplório em sua miserabilidade, nem com o 'deus' da transcendência, fantoche produzido pela teologia platonizante.

Estou firmemente persuadido quanto a existência da Mente Cordenadora, mas não numa mente trasncendente, separada do mundo e, por inferência lógica limitada.

Deploro igualmente o materialismo ingênuo e tosco, bem como o espiritualismo descarnado. Espírito e matéria formam uma unidade orgânica, como o corpo e a alma, e a Encarnação da Mente Suprema na natureza humana e material de Jesus Cristo dão solene testemunho quanto a esta suprema verdade.

Creiam os homens em Demócrito e os cristãos em Platão ou em seu porta voz Zwinglio (cf Jeremias Kleim 'Os sacramentos na tradição reformada'), permaneço a parte; tirando as devidas consquências do mistério da Encarnação. Panenteísta, sinto-me bem mais perto de Scotus Eurigena, de David de Dinant e de Spinoza do que dos extremistas beligerantes do nosso tempo.

Percebo que a febre da transcendência absoluta agrava-se do Oriente ao Ocidente, constituindo como que um revertério face aos ideais helenisticos levados ao coração do Oriente por Alexandre... Há quase milênio e meio Platão renova seus assaltos no cangote dos filhos do deserto... Os ateus, materialistas e cientificistas, representam o extremo contrário...

Vivemos numa era de tensão espiritual, de despreparo epistemológico, de declínio filosófico, de crise...

Além do transcendentalismo platonico/farisaico ou judaizante, enfrenta o Cristianismo outro problema não menos sério. O problema do Infernismo...

Por infernismo compreendemos a doutrina, ora associada as ortodoxias romana e protestante, segundo a qual após a morte os pecadores sofrerão castigos perpértuos, sempiternos e inextinguiveis.

Senti-me mais uma vez atraido pelo tema ao folhear a obra de Bertrand Russel sobre o Cristianismo, obra em que o atilado pensador inglês dialoga com o erúdito sacerdote papista Copleston S J. Como toda alma bela e nobre sentiu-se o matemático inglês atraido pelo Verbo Incriado e inclinado a verdade divina...

Deu porém com um obstáculo intransponível: a doutrina da eternidade das penas ou do inferno... e dando com ela permaneceu agnósta ou como alegam outros 'ateu'... Pois se o qua há de mais belo e digno de Deus neste mundo, merece ser tido na conta de miserável e defeituoso como não há de passar a mente ao ateísmo???

Bela é a República que tentamos salvar e a Instituição que desejamos purificar e como tal divina. Trás no entanto esta República, ao menos em parte de seu corpo - a parte Ocidental - uma peçonha virulenta e baba asquerosa: a teoria das penas eternas... graças a qual um número imenso de seres racionais deixou de abraçar o Cristianismo ou desertou de suas fileiras para maldizer a divindade de Cristo Jesus...

Na verdade tais pessoas jamais maldisseram a divindade de Cristo Jesus, aderindo ao espiritismo, que ignora o dogma ímpio dos castigos eternos, apresentaram o filho de Maria como um Homem Bom...

A Cristandade 'ortodoxa' do Ocidente, é que tem-no apresentado como um Deus Mau.

Tanto mais digno do Nazareno ser acolhido como o homem bom dos espiritas, do que ser apresentado como o deus malévolo da pseudo Cristandade; rebotalho de deus urdido a imagem e semelhança dos homens mesquinhos, cruéis e vingativos.

Limitado seria o deus cujo amor fosse limitado e finito o deus cuja compaixão fosse finita.

Caso o amor e o perdão divinos possuissem limite e medida seriamos levados a crer que o amante e perdoador divino é igualmente medido e menssurável.

Ora estas noções não estão de acordo com a essência divina... nem com o mandamento dado aos simples mortais que são finitos: "Perdoai setenta vezes sete."

Como poderia Deus impor aos homens o que ele mesmo recusa-se a por em prática?

Não deveria ser o primeiro Ser, o primeiro a dar-nos exemplo de benemerência e filantropia?

Já foi dito, mas é sempre bom insistir que o padrão de homem estabelecido e determinado por Jesus de Nazaré é muito superior ao padrão de deus oferecido pelo Velho Testamento e pela igreja ocidental.

O homem do Evangelho esta obrigado pela lei do amor a perdoar sempre, como o Pai do Filho pródigo; o deus que a Cristandade foi pedir de empréstimo a Moisés e a sinagoga, recusa-se a perdoar...

Souberam no entanto os pagãos mais ilustrados que a vingança e o rancor são atributos bem pouco compatíveis com uma natureza ilimitada, infinita e perfeita... eis porque os hebreus e sectários cristãos votaram-lhes ódio eterno, porque a noção de Deus proclamada por eles era tanto mais digna e elevada.

Foi na verdade o infernismo gerado pelas trevas da Idade Média, cujos filhos ignoravam supinamente as letras gregas em que a palavra divina do Evangelho fora codificada e promulgada.

Tampouco lembraram-se os apóstolos do protestantismo de reforma-lo... antes reforçaram-no ainda mais. Se a igreja romana converteu o 'espírito maligno' ou 'Satanaz' em anjo, a teologia protestante conferiu-lhe o status de 'Ser necessário', restabelecendo o dualismo persa.

Em vão tentaram uns e outros conciliar o dito dogma com as exigências da intuição e da razão humanas... em vão esforçaram-se por racionaliza-lo recorrendo aos préstimos da Escolástica. A todas as cogitações do pensamento humano mostrou-se a dita teoria irredutivel...

Principiaram seus defensores alegando que o inferno era uma espécie de contraponto da liberdade humana.

Não lhes ocorreu que a vontade humana é livre... que sendo livre sempre pode mudar e que podendo mudar pode passar do mal ao bem, arrependendo-se; e pelo arrependimento grangear o favor divino.

Disseram então que após a morte física a vontade torna-se imutável... Que a vontade posta para o Bem tornesse imutável em vista da comunhão com aquele que é imutavel por natureza, é perfeitamente compreenssivel... afinal aqueles que estão na unidade divina participam dos atributos e qualidades divinas. Isto porém não se dá com os ímpios, pelo simples fato de estarem moralmente apartados do Sumo Bem.

Eis porque os doutores mais atilados foram obrigados a admitir que os ímpios são fixados no mal e no pecado por um decreto positivo, fruto da vontade divina. Ou que a natureza ou a constituição do além túmulo impossibilitam a mudança, a conversão e o arrependimento; o que dá no mesmo pois esta constituição fixada por Deus serviria de obstáculo a conversão e ao arrependimento segundo a mesma vontade divina.

Sejam quais sejam os obstáculos e limitações relacionados a conversão, ao arrependimento e a redenção do homem após a morte, procedem todos em última analise da vontade divina (na medida em que Deus somente é a lei suprema da natureza criada). O que nos obriga a concluir que o obstáculo ao perdão e a finitude do amor encontram-se no próprio Deus...

Não perderei meu tempo examinando a fundo a opinião segundo a qual as penas são infinitas porque pelo pecado o homem desobedece e ofende a um Ser que é infinito... a simples capacidade do finito ofender ou seja de produzir algum efeito passional no Ser infinito labora em erro arquigrosseiro. A superioridade mesma do infinito exije que permaneça impassivel e inatingivel face as ações dos seres finitos que produziu e cujos derradeiros efeitos antecipadamente conheceu...

A um lado a teologia infernista oferece-nos a imagem de um deus vingativo, cruel, inexorável; dum patrão, dum chefe, dum soberano, dum senhor... jamais porém do Pai, pois o pai sempre ama e perdoa. Por outro lado oferece-nos ela a ideia de um deus frágil e mutável... uma e outra proposta não satisfazem a razão humana...

Eis o teor da conversa que tive há poucos dias com um aluno protestante e infernista cuja mente domina certos rudimentos de lingua grega.

Após muito pensar meu dileto aluno foi obrigado a sair-se com esta: 'Penso, caro mestre, que não devamos sujeitar tais doutrinas ao exame da razão humana.'

Mas não foi exatamente o que fez Lutero ao apresentar o livre exame como um dos cinco pilares?

Afinal o fato de Lutero ter classificado a razão como uma 'prostituta louca' e brindado o Filósofo com o epíteto de Demônio, não o tornam menos racionalista do que Bultmann e de certo modo precursor seu.

Excetuado o dogma supremo da Santa Trindade, que diz respeito a Natureza divina e infinita, julgo que todos os dogmas são passiveis de compreenssão, satisfazendo destarte os justos e legítimos anseios de nossa condição. A própria confecção de 'teologias' iniciada pelo apóstolos Paulo no século I, ou no mais tardar por Justino sessenta anos depois, justifica nossa asserção.

Desde que fomos incitados a dar as razões de nossas esperança não é mais possível ficar apenas com a fé. Faz-se mister refletir a respeito dela para contemplar o decreto apostólico inserido no Novo Testamento.

Admitindo-se que a razão proceda de Deus e que a obra de Deus possua certa qualidade - do contrário estariamos no campo do maniqueismo - como poderiamos honra-lo evitando fazer uso dela???

Assim sendo estou firmemente persuadido de que a elaboração de uma teologia de qualidade presta duplo serviço a causa da instituição Cristã: exaltando a fé e honorificando a Suprema fonte da razão humana que é Deus.

Resta-nos concluir que sendo o infernismo incompatível com a razão não pode ter sido ensinado por Jesus Cristo, crido por seus santos apóstolos e imposto aos fiéis pela Igreja dos primeiros séculos. Não é o Cristianismo que esta equivocado, tampouco o Evangelho, o Novo Testamento ou a Igreja Histórica, subsistente no Oriente até nossos dias; mas a fé das Cristandades ocidentais.

E atribuir a este tipo de fé as modernas conquistas do materialismo e do ateismo.

Resta-nos concluir esta breve exposição com as palavras do pensador: 'Existindo o inferno não existiria deus algum e existindo Deus não pode existir inferno.'

Comentários

  1. Parabéns pelo seu post!
    Precisamos de mais pessoas como você!
    Abracei o Universalismo Cristão, sem o qual ainda estaria no ateísmo, no qual cai devido a doutrina do inferno entre outras!

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  2. Foi através da Apocatastasis e Theosis que aboli a fé no Inferno!! :)

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  3. Também seria agnóstico e irreligioso, caso a doutrina do infernismo fosse plenamente reconhecida pela Cristandade. Aquele que reflete a sobre semelhante dogma ou adere ao universalismo (enquanto Cristão Católico Ortodoxo sou Origenista) ou passa ao ateísmo. Não há nada de tão nítido na instituição Cristã do que o amor e a paternidade divinas, ora a crença em penas perpétuas é inconciliável com tais princícios e valores. Se cremos na perfeição, na infinitude, na ilimitação, na sabedoria, na benevolência, na clemência, no amor e na própria justiça não podemos crer em punições eternas. Paz e bem.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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