Se o exame é livre, porque a intolerância?



Há um certo paradoxo no protestantismo.

Paradoxo este daqueles complicados de entender, daqueles em que, um mesmo fenômeno apresenta tantas contradições em um mesmo aspecto que é de deixar qualquer um meio tonto, ou atônito...

Um destes paradoxos do protestantismo é: como um movimento que, de certa forma, esteve na vanguarda do chamado individualismo no Ocidente (isto, tanto no bom como, talvez, no mau sentido) possa desenvolver características, as vezes, tão intolerantes?

Explico.

O protestantismo é, em tese, o ramo da cristandade que tem o menor espectro dogmático de todos; ou seja, comparado com o catolicismo romano e com a ortodoxia do oriente, há pouquíssimas crenças absolutamente obrigatórias no protestantismo.

De modo geral, no protestantismo as crenças tradicionais na Santíssima Trindade, mais as teses protestantes do "Somente a Cristo", "somente a Graça", "somente a fé" e "somente a Escritura" são, de modo geral, são as crenças que toda a comunidade que se vê devedora da Reforma deveria acreditar. Tudo o mais é secundário. Tudo o mais é "adiáfora".

Entretanto, o que se vê na prática é um pouco diferente disso.

Geralmente se faz um cavalo de batalha por questões secundárias.

As igrejas evangélicas se fecham de tal modo em seu conteúdo doutrinário que qualquer discordância faz com que o grupo dissidente, ou mude de igreja, ou funde a sua própria comunidade. Aí, outro grupo dissidente se forma e assim sucessivamente.

O problema de cada nova comunidade, é que cada qual sente a força bem de perto de sua liderança máxima; e, quanto menor a comunidade (em termos globais, mesmo que tenha milhares de membros, uma igreja ainda é uma pequena comunidade), menor o espaço para a pluralidade. E como é comum nos grupos humanos, ainda mais evangélicos, a possibilidade de discordância, o fenômeno das divisões se repete indefinidademente. Mas o estranho é que, não obstante, novos grupos se formarem por intermédio de opiniões diferentes, fato é que, em muito, acabam se assemelhando, mostrando o futuro que, de fato, aquilo que as separou não era tão primário assim...

Então, o protestantismo apresenta o estranho fenômeno de ter uma gama dogmática não tão grande e opressora, como no meu entender é a do catolicismo (com todo respeito aos meus irmãos católicos, lá não se pode discordar em nenhum ponto da igreja), entretanto, é no protestantismo que se sente o peso maior de sua liderança, e, no meio eclesial, geralmente, pouco espaço para manobra. Há comunidades históricas que se dividiram pelo estilo de música que se toca na igreja, pela reforma ou não do hinário, vestes, conservadorismo moral, etc; são os mais variados motivos.

Então, um movimento que tanto apregoou a liberdade de consciência, estará logrando êxito em savalguardar esta mesma liberdade de seus próprios membros?

Se o protestantismo é tão "curto" e "simples", doutrinariamente falando, porque geralmente apresenta tanta intolerância? Acho que são perguntas como estas que os evangélicos, de modo geral, precisam meditar e responder.

Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Este estranho fenômeno duma sistema 'libertário' produzir seu efeito contrário, isto é, 'despótico' ou ultra dogmático, semprer chamou a minha atenção.

    Durante muito tempo busquei a resposta até topar com ela nas obras de J B Bossuet.

    Segundo este autor no momento em que Lutero afirmou ou seu cárater de reformador e de livre examinador, teve estrategicamente - num primeiro momento - de estender parte deste cárater - de livre examinador - as outras pessoas com o intuito de formar uma comunidade.

    Pois sabia que ao iniciar uma reforma objetivando a erradicação do despotismo papal não poderia assumir ares igualmente despóticos, mas libertários.

    Todavia como sendo mero sacerdote e não se pudesse apoiar em qualquer tipo de direito divino que excluisse os demais membros da igreja, acabou abrindo precedente para que qualquer leigo se puzesse a interpretar as escrituras de um modo diverso do seu.

    Lutero não podia evitar que sua obra deixasse de ser reformata para converter-se em reformanda ou seja em estádio de eterna reforma.

    Melanchton percebendo para onde o principio subjetivista do Livre examinismo conduziria o credo cristão, registrou: Temo pelo dia em que os nossos se porão a reformar as pessoas da Santa Trindade... então será o fim.

    Tais os motivos que levaram Lutero a recuar de sua posição primitiva - livre examinista - e a condena-la formalmente. Percebeu que após a si viria o dilúvio e por isso afirmou: Quem não concorda comigo é réu do inferno.

    Ao que os anabatistas, zwinglianos e calvinistas - que dele discordavam em sua leitura das mesmas escrituras - exclamaram em coro: Há dois papas: o de Roma e o de Wittemberga sendo este último o pior.

    Conclusão: cada livre examinista - especialmente quando voltado para o antigo testamento - passou a encarar a reforma precedente como insuficiente e todas as orgs existentes como contaminadas pelo papismo.

    Daí nenhum dogma permanecer de pé: pois socianos, cristadelfos, unitarios e jeovistas não encontrando qualquer menção a Trindade em suas bíblias lançaram-na as urtigas.

    Não há pois dogma cristão que não tenha sido regeitado por algum livre examinista ou reformador fanático.

    O fim de tudo será a transformação do Cristianismo em mero judaismo ou islamismo destruindo seus elementos constituintes especificos.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Mais vistas do mês

Toda a Reforma em apenas dois versículos

Uma reflexão acerca do Salmo 128

Quem não dá o dízimo vai para o inferno?

A triste história do rei Asa

A impressionante biografia de William MacDonald

Ananias, o discípulo que batizou Paulo

José do Egito - um exemplo de superação

A Conversão de Zaqueu (Lc 19)

Uma comparação entre Zacarias e a Virgem Maria

Os "logismoi"