Prostitutas no Reino de Deus



Estes dias, alguém me perguntou porque Jesus foi tão radical ao ponto de dizer que as prostitutas precederiam os religiosos no Reino dos céus.

Realmente, é uma questão bastante chocante, um dito bem radical da parte de Nosso Senhor. Daí, me pus a pensar no assunto.

Não sei se esgoto o tema, ou ao menos se acerto, mas pelo menos tento...

É muito fácil tornar-se um bom religioso, mas ao mesmo tempo uma pessoa centrada em si mesma.

Como assim?

Explico.

Ou tento...

Primeiramente, não é difícil ser um bom moralista.

Não roubar, não matar, não mentir, não adulterar, etc...

Cumprir estas coisas são mais do que obrigação de qualquer pessoa civilizada.

E qualquer pessoa sensata sabe que, obedecer tais coisas, beneficia quem as pratica.

O jovem rico fazia todas estas coisas, mas não foi aceito por Cristo...

Em segundo lugar, não é difícil cumprir nossas obrigações litúrgicas, religiosas, cultuais...

Comparecer regularmente a um culto dominical, cantar bastante, ajudar a instituição com ofertas, dar o dízimo da hortelã, etc.

Até aqui, se fizermos isso, seremos bons fariseus; nossa justiça será igualzinha a destes.

Em terceiro lugar, não é difícil amar quem ama a gente.

Tal amor, muito belo e verdadeiro, na verdade pode ser também uma expressão do nosso próprio egoísmo.

Isto porque, precisamos amar que nos ama por uma questão de sobrevivência.

E amar um filho, alguém que nos é querido, é também uma expressão de nossa necessidade natural por afeição, carinho e dependência.

Em quarto lugar, não é difícil sustentar a crença na "reta fé", na ortodoxia de nossa própria religião. Crer que Jesus é o nosso único Senhor e Salvador, ter prazer em sua Palavra, gostar de estudar as doutrinas de nossa crença.

Portanto, ser moralista, cumprir nossos rituais litúrgicos, estar em paz com quem nos ama, sermos ortodoxos em nossa fé, expressa a justiça daqueles que eram considerados por Jesus como fariseus.

Não nos faz nem mesmo quase cristãos... Pois podemos perfeitamente fazer tais coisas e continuarmos totalmente auto-centrados, congratulando-nos uns aos outros pela nossa própria bondade...

Vamos para o céu agindo assim? Herdaremos o Reino?

E as prostitutas?

As prostitutas precederão muitos religiosos. Quem afirmou isso foi Jesus, não foi eu.

E porque?

Bom.

As prostitutas vendem talvez o que de há mais sagrado lhes pertencem em prol de pessoas que elas amam. O próprio corpo, juntamente com sua dignidade. Por dinheiro, permitem que homens descontrolados realizem suas necessidades fisiológicas nelas.

Elas doam o seu corpo, alugam o seu ser, sua dignidade, seja para sustentar a si mesmas, seus filhos, seus pais; enfim, pessoas que delas necessitam.

Lembro-me de uma passagem de "Crime e Castigo", em que Dostoiévsky narra por páginas o drama de uma jovem mocinha que diante da calamitosa situação de sua família nas ruas de São Pestesburgo acaba que vendendo sua virgindade e se torna prostituta. Suas mãozinhas trêmulas diante de uma mãe já velha, um pai bêbado, entregando uma poucas notas para aliviar as dores de sua família. Sua mãe, lacrimosa, respeitosamente pega o dinheiro daquela mãozinha de menina  cujos seios não estavam nem totalmente formados ainda, e juntas, abraçam-se, ajoelham-se e rezam. Faz tempo que li. Chorei. Não sei se era realmente assim que estava descrito. É assim que me lembro. Quando li, aquilo me marcou profundamente.

Então, suspeito que era disso que Jesus estava a falar. De gente que, ainda que de um modo errado, ainda que devido a perversidade do sistema, se doa não somente para si própria, mas em prol do outro, abrindo sua mais profunda dignidade, fazendo-se de objeto, por amor. Enquanto que religiosos, bem que podem fazer da religião um sistema, cumprir fielmente seus preceitos, mas serem completamente auto-centrados.

Importa-nos entrar no Reino. Religiosos vão entrar, segundo Jesus. Depois das prostitutas, mas vão. Importa-nos aprender a lição de Jesus, para que de algum modo, nossa justiça possa ultrapassar a justiça dos fariseus, não por sustentarmos uma doutrina "solafideísta" conforme a ortodoxia luterana e protestante, mas por atos de justiça.

Comentários

  1. A percepção de justiça pelos atos realizados é um desafio. A fé é o elemento chave para a graça de Deus alcançar e salvar alguém. Aqueles que o mundo vem rejeitando, vitimas de si proprios ou do pecado de outros, são, também, alvo do amor de Deus. Neste sentido é que percebo Jesus falar de prostitutas ou cobradores de impostos precedendo os religiosos, por causa da hipocrisia destes, e por causa da fé daqueles. Não se pode com isto justificar a abolição da religião, na forma de organização eclesiástica, nem tampouco a aceitação de outros pecados como adulterio, prostituição ou mesmo o desejo lascivo. A pratica do pecado é abominável aos olhos de Deus. Há festa no céu por um pecador que se arrepende, seja este um fariseu, seja este uma prostituta. Fiel é a palavra: Cristo Jesus veio buscar e salvar o que estava perdido. Aquele que se arrepende e crê, é salvo. Simples assim.

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  2. Olá, amigo. Obrigado por comentar por aqui. Concordo contigo que passagens como essa não justificam, nem a extinção da religião organizada, nem a justificação do pecado. Entretanto, passagens como esta servem, ao meu ver, de advertência a todos aqueles que encontram-se nos quadros da religião organizada, no sentido de que, fora dela, possa haver, ainda que imperceptivelmente aos nossos olhos, a expressão de uma fé salvadora. Um grande abraço.

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